sábado, 3 de janeiro de 2015

Le Monde Diplomatique Brasil, Solidariedade

Nem assistencialismo

nem caridade: solidariedade

O enfraquecimento dos mecanismos de segurança social, como a recente redução das subvenções familiares pelo governo francês, afeta a coesão nacional. Pela dignidade que gera, esse princípio jurídico forma a base do desenvolvimento humano
por Alain Supiot


Mesmo devendo o essencial de sua fortuna ao pensamento sociológico e político, a noção de solidariedade tem origem jurídica. Ela designou inicialmente (no Código Civil francês de 1804) uma técnica do direito da responsabilidade, utilizada em caso de pluralidade de credores (solidariedade ativa) ou devedores (solidariedade passiva) de uma mesma obrigação. Foi somente no final do século XIX que ela adquiriu um sentido jurídico novo: o de uma organização coletiva que permite enfrentar os riscos engendrados pelo maquinismo industrial e fazer pesar sobre seus autores uma responsabilidade objetiva, independentemente de qualquer erro. Assim foram instituídos os regimes de solidariedade, que Jean-Jacques Dupeyroux descreveu como “poupanças comuns [...] em que se cotiza segundo seus recursos e das quais se retira segundo suas necessidades”.1 Já que nunca se deixa dissolver num simples cálculo de interesses, a solidariedade é um fator de resistência, para o bem e para o mal, no império do mercado. Dar a ela força jurídica permite limitar a extensão da competição econômica em todas as áreas da vida.

Na França, foi no plano nacional que a solidariedade adquiriu sua maior amplitude. O Código da Segurança Social (1945) afirma assim que “a organização da segurança social é fundada sobre o princípio de solidariedade nacional”. A esse princípio corresponde uma cidadania social – distinta da cidadania política – que repousa sobre três pilares: a segurança social, os serviços públicos e as liberdades coletivas garantidas pelo direito do trabalho (liberdade sindical, negociação coletiva e direito de greve). Essa cidadania social, que não procede de um direito do sangue ou do solo, une todos aqueles que contribuem com a solidariedade nacional por meio de seus impostos e cotizações e se beneficiam desta enquanto segurados sociais e usuários dos serviços públicos. A solidariedade nacional não é exclusiva. Ela admite em seu seio a expressão de solidariedades mais estreitas, que podemos qualificar como “solidariedades civis”, que têm uma base voluntária e são administradas por organizações sem fins lucrativos, como as associações, os sindicatos e mutuelles [agrupamentos com objetivos específicos, como saúde coletiva (N.T.)] – sem esquecer as solidariedades familiares. Todas existem sob a égide da solidariedade nacional, que as coordena e a qual, ao mesmo tempo, elas prolongam e apoiam. As ligações entre esses círculos de solidariedade são múltiplas; não podemos, então, modificar um sem afetar os outros. Nenhum sistema de segurança social sobreviveria muito tempo, por exemplo, ao desaparecimento das solidariedades familiares. Basta para compreender isso converter em horas de salário o trabalho invisível que representam os cuidados dedicados nesse contexto às pessoas doentes ou idosas.

Alvo privilegiado dos neoliberais
Assim definida, a solidariedade se distingue tanto do seguro quanto da caridade. Diferentemente dos seguros privados, que se apoiam em um cálculo atuarial dos riscos (por um método estatístico), um regime de solidariedade repousa no pertencimento a uma comunidade, seja ela nacional, profissional ou familiar. Os membros dessa comunidade que são, num dado momento, mais afortunados ou menos expostos ao risco contribuem mais que os menos afortunados ou mais expostos, mas todos têm os mesmos direitos. Diferentemente da caridade (ou de seu avatar contemporâneo, o care), a solidariedade não divide o mundo entre os que dão e os que recebem: todos devem contribuir para o regime segundo suas capacidades e têm a vocação de se beneficiar dele segundo suas necessidades. Expressão de igual dignidade entre os seres humanos, a organização da solidariedade é um freio à extensão da lógica mercantil a todas as atividades humanas. É por isso que ela é, há trinta anos, o alvo privilegiado das políticas neoliberais.
A erosão das solidariedades nacionais é a manifestação mais visível desse questionamento. O ataque, frontal no que diz respeito aos serviços públicos, foi menos brutal no caso da seguridade social, ainda que desde 1994 o Banco Mundial tenha fixado claramente para os sistemas de aposentadoria um novo objetivo: converter as cotizações em valores mobiliários abundantes nos mercados financeiros. Na Europa, onde a ligação das populações com a seguridade social é forte, a realização desse programa tomou um rumo indireto. Mais do que atacar diretamente esses regimes, suas bases financeiras foram destruídas, rompendo a ligação entre o dever de contribuir e o direito de se beneficiar. E praticaram o que o conselheiro de Estado Didier Tabuteau chama de “uma política do salame”, que consiste em “cortar em fatias finas o seguro-saúde obrigatório, para permitir sua absorção, progressiva e tolerada, pelos organismos de proteção complementares”.2
Essa ruptura é particularmente clara na esfera da União Europeia. É ali que de fato a solidariedade foi pela primeira vez reconhecida como um princípio geral do direito (primeiro em 1993 pela Corte de Justiça Europeia, depois em 2000 pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais). Há quinze anos, porém, a Corte de Justiça considera as legislações sociais e fiscais dos Estados-membros “produtos” em competição num mercado europeu de normas. Ela autoriza as grandes empresas a escolher a mais econômica e a se subtrair aos deveres inerentes ao princípio de solidariedade nacional. As diretivas europeias, a exemplo daquela que rege o destacamento de trabalhadores,3 uma terceirização com mão de obra estrangeira, caminham nesse sentido. Ao mesmo tempo, a Corte de Justiça invoca a livre circulação para estender o círculo dos beneficiários da solidariedade nacional a pessoas que não participam de seu financiamento. Segundo ela, a cidadania europeia impõe “certa solidariedade financeira” aos originários do Estado de acolhida para com os outros Estados-membros. Aplaudiríamos isso com boa vontade se a cidadania europeia fosse uma verdadeira cidadania social; em outras palavras, se, em vez de se entregarem a uma concorrência fiscal, os Estados-membros construíssem juntos regimes de solidariedade em escala europeia. No entanto, ao encorajar a fuga dos contribuintes e impor a responsabilização dos não contribuintes, o direito europeu quebra a ligação entre direitos e deveres de solidariedade; ele prepara um mundo em que só subsistirão o seguro e a assistência, o mercado e a caridade. A União Europeia se comprometeu dessa maneira com aquilo que Fritz Scharpf nomeou justamente de um processo de “integração negativa”, que desmantela as solidariedades nacionais sem conseguir edificar solidariedades europeias.4
As solidariedades civis, que dizem respeito principalmente ao direito do trabalho (liberdade sindical e direito de greve), assim como o domínio da proteção social complementar (mutuellese instituições paritárias, sem fins lucrativos, que unem empregados e empregadores), sofrem o mesmo trabalho de destruição nas bases. Desde 2007, a Corte de Justiça da União Europeia se dedica a restringir sistematicamente as liberdades coletivas dos assalariados.5 Ela reconhece que elas têm um valor jurídico, claro, mas inferior ao das liberdades econômicas das empresas: assim, as organizações sindicais não devem em princípio fazer nada que seja “suscetível de tornar menos atraente ou até mais difícil” o recurso aos deslocamentos (exportação de locais de trabalho para países com menor custo de mão de obra ou outros incentivos), às bandeiras de conveniência (utilização do pavilhão de outro país em navios para fugir de obrigações fiscais) ou a uma taxação internacional de mão de obra que permitisse escapar às cotizações sociais do país de acolhida. Essa jurisprudência, que coloca em questão o direito de greve, suscitou diversas críticas, entre elas as do Comitê de Especialistas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O sistema de supervisão das normas da OIT se viu mergulhado em uma crise sem precedentes, com os representantes dos empregadores se opondo a qualquer forma de reconhecimento internacional do direito de greve...
Essa empreitada de desconstrução ocorre também no plano nacional, como mostra a evolução dos benefícios familiares na França. Com o sucesso demográfico, tinha sido decidido no pós-guerra que a solidariedade nacional seria utilizada em proveito de todos os lares onde houvesse crianças, quaisquer que fosse a renda. Diminuindo ou suprimindo essas vantagens para as classes médias, as reformas recentes nos levaram a um sistema de assistencialismo aos pobres. Quanto à proteção social complementar, é o Conselho Constitucional que decidiu acabar com o princípio de solidariedade. A Lei de Segurança no Emprego, que generalizou em 2013 os complementos de saúde, visava autorizar os parceiros sociais a estabelecer um “alto nível de solidariedade” na escala dos ramos profissionais ao designar um organismo único para garantir essa proteção. A validade dessas “cláusulas de designação” tinha sido reconhecida em 2011 pela Corte de Justiça da União Europeia.6 O Conselho Constitucional declarou, no entanto, que elas eram contrárias à liberdade de empreender e à liberdade contratual, numa decisão que instaurou o golpe de não dizer uma só palavra a respeito da solidariedade.7 Decisão desastrosa segundo o representante da União Profissional Artesanal, Patrick Liébus, que ressaltou a situação de vulnerabilidade das pequenas empresas, entregues às “iniciativas e pressões de qualquer natureza que o setor dos seguros não deixará de exercer sobre elas”.8
Nos países emergentes, por outro lado, a instituição de mecanismos de solidariedade não é vista como um obstáculo para o desenvolvimento, mas como uma de suas condições mais urgentes, o que deu espaço a iniciativas notáveis, como o Bolsa Família no Brasil9 e o National Rural Employment Guarantee Act10 na Índia. Esses programas não são isentos de defeitos, mas dão testemunho de que a organização da solidariedade é uma questão de futuro que se coloca em qualquer sociedade, e não um monumento histórico que poderíamos eliminar ou conservar em formol. Mais comumente, as tensões e desigualdades engendradas pela globalização fazem reaparecer as solidariedades na ação, como vemos em situações tão diferentes quanto as greves na China e as revoltas do mundo árabe, mas também solidariedades de exclusão, fundadas no retorno fantasiado a identidades religiosas, étnicas ou tribais.11
Em escala mundial, a solidariedade também reaparece enquanto técnica do direito da responsabilidade. A organização reticular das empresas transnacionais permite a seus dirigentes utilizar as empresas que eles controlam como barreira de proteção, resguardando-os de qualquer perseguição. A responsabilidade solidária é um instrumento jurídico que possibilita perfurar a tela da personalidade moral e obrigar aqueles que têm o poder econômico a responder pelas consequências sociais e ambientais de suas decisões. Engajada na instauração da responsabilidade das empresas em matéria de produtos defeituosos, essa iniciativa pode dizer respeito às mais diversas questões: recurso ao trabalho ilegal, infração das regras de saúde e segurança, desrespeito às normas de concorrência, corrupção ou fraude fiscal, poluição marinha, recolocação em estado ecológico de terrenos industriais...
A ideia avançava desde 2005 no sentido de tornar aqueles que controlam uma atividade econômica responsáveis por princípio pelos danos que ela causa. Enterrada pelo Senado, ela ressurgiu no rastro do drama do Rana Plaza,12 sob a forma de uma proposta de lei que visa introduzir a noção de dever de vigilância das empresas-mães e daqueles que dão as ordens. Apresentada pela esquerda do Partido Socialista francês como uma das condições de um novo “contrato de maioria” parlamentar, essa reforma foi esvaziada de sua substância na lei de 10 de julho de 2014, “visando lutar contra a concorrência social desleal”. Em vez de consagrar o princípio da responsabilidade solidária daqueles que dão as ordens, a lei só os obriga a recriminar seus prestadores de serviços quando a inspeção do trabalho os informa de suas infrações...
Esse princípio deveria, contudo, acabar se impondo, pois nenhuma ordem jurídica pode por muito tempo se acomodar a um princípio geral de irresponsabilidade. Assim como uma fênix, a solidariedade renasce sempre de suas cinzas.

Alain Supiot
Alain Supiot é professor do Collège de France. Titular da cadeira “Estado Social e globalização: análise jurídica das solidariedades


Ilustração: Aroreira


1  Jean-Jacques Dupeyroux, “Les exigences de la solidarité” [As exigências da solidariedade],Droit Social, Paris, n.741, 1990.
2  Didier Tabuteau, Démocratie sanitaire. Les nouveaux défis de la politique de santé[Democracia sanitária. Os novos desafios da política de saúde], Odile Jacob, Paris, 2013.
3  Ler Gilles Balbastre, “Travail détaché, travailleurs enchaînés” [Trabalho destacado, trabalhadores acorrentados], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.
4  Fritz W. Scharpf, “The asymmetry of European integration or why the EU cannot be a ‘social market economy’” [A assimetria da integração europeia ou por que a UE não pode ser uma “economia social de mercado”],KFG Working Paper, n.6, Freie Universität Berlin, set. 2009.
5  Cf. as sentenças de Viking e Laval (2007).
6  Jacques Barthélémy, “Clauses de désignation et de migration au regard du droit communautaire de la concurrence” [Cláusulas de designação e de migração segundo o direito comunitário da concorrência], Jurisprudence Social Lamy 2011, n.296, Rueil-Malmaison, 24 mar. 2011.
7  Jean-Pierre Chauchard, “La prévoyance sociale complémentaire selon le Conseil constitutionnel” [A previdência social complementar segundo o Conselho Constitucional], Revue de Droit Sanitaire et Social,Paris, n.4, 2014.
8  “Complémentaire santé: le Conseil constitutionnel rejette les ‘clauses de désignation’” [Saúde complementar: o Conselho Constitucional rejeita as “cláusulas de designação”], 14 jun. 2013. Disponível em: .
9  O programa Bolsa Família, lançado em 2003, ajuda financeiramente 13 milhões de famílias, que devem em retorno mandar seus filhos para a escola. Ler Geisa Maria Rocha, “Bourse et favelas plébiscitent ‘Lula’” [Bolsa e favelas votam “Lula”], Le Monde Diplomatique, set. 2010.
10            Votado em 2005, esse programa garante legalmente aos adultos de lares rurais o direito a cem dias de trabalho por ano no setor dos trabalhos públicos, recebendo um salário mínimo.
11            Para um quadro de conjunto dessa renovação da solidariedade, cf. La solidarité. Enquête sur un principe juridique [A solidariedade. Pesquisa sobre um princípio jurídico], a ser publicado em 2015 pela editora Odile Jacob (Paris).
12    Do nome da usina têxtil que desmoronou em Bangladesh, causando a morte de mais de 1,1 mil pessoas. Ler Olivier Cyran, “Au Bangladesh, les meurtriers du prêt-à-porter” [Em Bangladesh, os assassinos do prêt-à-porter], Le Monde Diplomatique, jun. 2013.
01 de Dezembro de 2014

Fonte: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1776

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