Uma tese original: as
línguas românicas não procedem do latim
Yves Cortez
Setembro
2008
Um
pequeno livro publicado na França em junho de 2007 vem para inaugurar uma possível
era copérniana no mundo da linguística. Sua tese fundamental é que temos estado
equivocados durante séculos a respeito da verdadeira origem das línguas
românicas (o Castelhano, o Catalão, o Francês, o Italiano, o Português, o Romeno,
entre outros). O autor, ao longo de doze capítulos de leitura deliciosa, nos apresenta
o que ele considera provas irrefutáveis contra o que ele mesmo denomina uma
autêntica aberração linguística.
Johnny Torres
Linguística
é uma ciência relativamente nova. Foram graças à descoberta de semelhanças
entre línguas tão separadas geograficamente como as línguas dos idiomas
europeus, as línguas faladas no Irã e outras faladas ou escritas na Índia, que se
chegou a conclusão que todas elas devem ter uma origem comum. Tal língua mãe
tem sido conhecida genericamente como Indo-Européia, embora não seja claro se
houve realmente um único povo que a tenha falado. A língua indo-européia,
através de ondas sucessivas de invasões provenientes do continente europeu, deu
origem, seguindo a teoria mais comumente aceita, a diferentes famílias linguísticas
das quais procedem por sua vez a maioria das línguas faladas no Ocidente.
Um
desses ramos, chamada de "itálica", deu origem a uma língua de
camponeses que se imporia, com o passar do tempo, na língua de um vasto império
que abrigava dentro dele grupos humanos das mais variadas características: o
Latim. Originalmente falado pelos habitantes da região italiana do Lácio, o
latim tornar-se-ia com os séculos na língua oficial do Império Romano. Levada a
lombo de cavalo e na ponta das espadas da conquista romana da Europa, com o
declínio e subsequente desmembramento do vasto império viria o inevitável
processo de decomposição do idioma latino. Com sucessivas invasões procedentes do
norte e leste da Europa, o latim, falado por pessoas de todos os tipos e
condições sociais, foi deformada progressivamente ao ponto de gerar diferentes
"filhas" que se tornam a língua das nascentes nações: Espanha,
França, Itália, Portugal, Romênia. É por isso que estes idiomas, chamados
"românicas" são chamados alternativamente línguas "latinas".
Uma mãe que não deixa
herança alguma
A
descrição acima é a história oficial das línguas românicas, incluindo
castelhano [português], comumente aceita e pode ser encontrada em qualquer
literatura sobre o assunto. No entanto, se algumas línguas evoluem a partir de
outras, deveríamos ser capazes de encontrar vestígios dessa evolução. Em outras
palavras, as línguas filhas deveriam ter traços hereditários da mãe. A
descoberta que Cortez* faz em seu livro, de uma forma exaustiva, é que isso não
acontece no caso do Latim e as línguas românicas.
Em
primeiro lugar, temos o vocabulário. É verdade que podemos encontrar milhares de
palavras que se assemelham em todas as línguas românicas e que provém de alguma
palavra latina (abjeto, belicoso, eterno, feroz, gracioso, honesto,
ignominioso, obsequioso, perpétuo, etc.). No entanto, a grande maioria de tais
palavras são de origem religiosa, ou seja, introduzida por cartas, escritos e
outros personagens de grande cultura, que conheciam a língua latina, no entanto
estas palavras não pertencem ao registro da fala cotidiana. Cortez faz uma
revisão detalhada dos vocabulários Latinos e românicos em vários domínios da
fala cotidiana e encontra um fato fundamental e surpreendente: o vocabulário
básico das línguas românicas não vem do latim. Por razões de espaço não posso
fornecer muitos exemplos, mas eu tomo um que parece significativo: a palavra
"guerra". É possível pensar que um povo conquistador como os romanos não
tenha legado aos povos submetido o vocabulário da atividade fundamental realizada?
Assim, vemos que "guerra" se diz "guerre" em francês e
"guerra" em italiano, espanhol e português, no entanto se diz "bellum"
em latim. Convido os leitores a fazer a mesma comparação com outras palavras no
mesmo domínio: Tratado, matança, general, soldado, batalha, Marechal... A
comprovação da enorme semelhança entre as línguas românicas é tão impactante
como o total de dissimilaridade com a palavra latina equivalente. O mesmo
exercício pode ser feito com os vocabulários de geografia, vestuário, partes do
corpo, etc.
Em
segundo lugar, a gramática da língua latina não tem a menor semelhança com as
gramáticas das línguas românicas. Como sabemos todos aqueles que têm estudado
línguas clássicas na escola ou faculdade, o latim, é igual como grande parte
das línguas indo-européias, é uma linguagem desinencial. Os substantivos se
declinam em casos dependendo da função gramatical que devem desempenhar na
oração. Nenhuma língua românica declina substantivos**, com exceção do romeno
que possui um sistema de casos muito pequeno. Igualmente encontramos que todas
as línguas românicas possuem artigos (definidos e indefinidos), enquanto o
latim não tem nenhum.
Como o grego, o latim tem o gênero neutro, para além dos gêneros masculinos e femininos. Nenhuma linguagem românica possui. E há mais: o latim vulgar, que é chamado a mãe das línguas românicas, era falado por pessoas supostamente bárbaras, incultas e sem instrução. Mas as línguas românicas possuem na gramática uma pessoa que o culto e aristocrático latim não tem: você [2ª pessoa gramatical no português]. Terminemos a rápida revisão de gramática latina com a evidência mais marcante: a sintaxe. Rosa alba est (literalmente: "a rosa branca é ') se converte em " A rosa é branca" e construções equivalentes em todas as línguas românicas, e Non tamen abstinuit venturos prodere casus per varias fortuna notas (literalmente "futuro ainda não deixou revelar os males através de vários sinais aleatórios") em português correto torna-se: O azar, no entanto, não deixou de revelar os males futuros por meio de sinais diversos. Em outras palavras: a sintaxe latina não tem absolutamente nada a ver com a sintaxe das línguas românicas.
Confrontados
com uma acumulação de diferenças tão grandes, os linguistas tradicionais têm
falado da existência de um estágio intermediário da língua latina que deu
origem às línguas românicas. Este "baixo latim" ou "latino
vulgar" veria a ser uma deformação do latim clássico. O problema, segundo Cortez,
é que o tempo para essas transformações vigorassem é muito curto, apenas alguns
séculos. No Concílio de Tours (meados de século IX) se fala, todavia de uma
"linguagem romana rústica", que se supõem que era a língua que deu
origem às línguas românicas, mas nenhum vestígio desta nos séculos XII e XIII.
Estamos falando, então, um tempo de geração de apenas 4 séculos. Cortez mostra,
a título de comparação, um fenômeno completamente paralelo oposto: no caso do
idioma grego. O grego e latim tiveram igual importância na antiguidade. As
pessoas instruídas aprendiam a ler, escrever e falar em ambas as línguas, que
eram ensinadas em todas as escolas romanas. Mas o fato importante é que a
língua grega, em 35 séculos, mudou muito pouco. Como explicar isso?
A verdadeira mãe
Encontramos-nos,
então, diante de um problema enorme que os melhores estudiosos latinistas não
conseguiram resolver: tentar reconstruir a língua original a partir de línguas
românicas não produz nunca a língua latina.
Para
Yves Cortez, o problema se encontra em outro lugar e nós não temos aceitado: o
latim não é a verdadeira língua mãe das línguas românicas, e chamar essa
ascendência linguísticas românicas com o apelativo “latim vulgar" é um
erro catastrófico, porque sugere que é um latim deformado. A sua conclusão é de
que ele era uma língua completamente diferente. De nenhuma outra forma se pode
explicar que os vocabulários básicos a gramática e sintaxe sejam completamente distintos.
A
pergunta que surge inevitavelmente agora é: de onde provêm as línguas
românicas? Para Yves Cortez, a verdadeira mãe sempre esteve do nosso lado, mas
nós a ignorávamos, incapazes de reconhecer o seu papel fundamental. O peso da
tradição e prestígio da língua latina (que foi selecionado, curiosamente, pela
Igreja Católica como língua franca e depois pelos homens educados de séculos
posteriores como o idioma de transmissão do conhecimento) a manteve relegada e
ignorada, e é neste ponto reside a originalidade da tese do autor. A verdadeira
língua matriz, que deu origem às línguas românicas, foi... o italiano, mas o
italiano não vem do latim como comumente se acredita, se não que é, e isso
também faz parte de sua tese, uma língua mais antiga, desprendida em tempos remotos
do tronco itálico. É a única explicação possível, segundo o autor, que pode dar
conta de uma transformação tão radical de uma língua desinencial em uma língua
preposicional, com mudanças tão drásticas no vocabulário e na sintaxe. Isto
significa que os romanos, que conquistaram a Europa falavam já certa forma de
Italiano (Cortez chamado de "o velho italiano" eu prefiro chamar de
"o paleo-italiano" embora seja provável que foi chamado pelos romanos
simplesmente "o romano"), que era a língua que foi gradualmente
transformado em línguas românicas que conhecemos hoje.
A
história teria se desenvolvido da seguinte forma: os "Italianos"
habitavam a região que mais tarde foi conquistada pelos "latinos"
(que falavam e escreviam em latim). Precisamente por isso, a língua do
conquistador latino era a língua escrita das instituições governamentais e de
gestão. Mas os "latinos", superior militarmente, eram inferiores em
número e não conseguiram impor sua língua antes do início da grande expansão
romana, e embora manteve-se o latim a língua escrita na oficial nos séculos subsequentes,
mesmo após o latim desapareceu como linguagem oral (se suspeita que o latim já
era uma língua morta na época de Cícero), era a língua romana falada, este
"italiano antigo", a que seguiu sua vida como a língua de expressão
cotidiana, embora não tenha sido colocado por escrito, conquistando os
conquistadores. Seria o primeiro caso na história da língua dos dominados que
passa a ser a língua dos governantes.
De
modo que as três línguas viviam na antiguidade romana: o latim, o grego e o
"romano" ou o "italiano antigo". Este fenômeno da dualidade,
a língua escrita – língua falada, não é estranho na época nem é hoje em dia.
Por exemplo, nos tempos de Jesus Cristo, na Judéia-Galiléia-Samaria antiga, se
falava o aramaico, mas estava escrito em hebraico. No Norte de África, no
Magreb*** hoje, dialetos árabes são faladas, mas está escrito em francês e em
árabe clássico.
Os
numerosos pontos em comum ao latim e as línguas românicas provêm de sua origem
comum, o indo-europeu. A isso se acrescentam os efeitos de uma coexistência de quase
20 séculos entre as línguas românicas faladas e o latim como língua escrita, a
tal ponto que muitas palavras românicas são tomadas a partir do latim.
Como
é de imaginar, esta nova tese de Yves Cortez produziu as reações mais severas
do mundo linguística. Em seu contra-ataque mostram vários fatores, dos quais o
mais importante é a falta (até o momento) de textos escritos neste "italiano
antigo".
Esta
hipótese levanta problemas tremendos. Teria, por exemplo, que redefinir uma boa
parte das etimologias de nossos dicionários, mas, embora esta teoria levanta
mais perguntas do que respostas, é sem dúvida, um caminho digno a explorar.
* Cortez. Yves Cortez, francês Engenheiro-urbanista e linguista.
** Declinação
substantivos do latim:
[verfile:///C:/Users/Cliente%20Especial/Downloads/74674784-latim-declinacoes.pdf]
*** Magreb é a região noroeste da África.
(Fonte: http://www.elcastellano.org/ns/edicion/2008/septiembre/latin.html)